Porque escrever?

Porque escrever

A Lei nos segue, estamos em cada ato fornecendo argumentos à nossa defesa ou inculpação. Jamais vivemos: criamos álibis. Esse é um pedaço de uma narrativa desarmada do próprio corpo; nessa passagem, a defesa é contra um olhar normativo e, mais do que isso, insuportável. Insuportável é o olhar do outro que te torna outro e grotesco. Insuportável é o olhar que te cerca no descampado da calamidade da tua diferença. Insuportável é o olhar da inquisição.
É uma narrativa e uma cartografia que, como tal, serve pra juntar um corpo com aquilo que ele pode; pra potencializar um corpo que foi separado do que pode, pois sobre este corpo se incide o poder. Cartografia de um infra-mundo, um mundo menor, que não entra nos registros escritos habituais, já instituídos. Aquele mundo que a Lei não deixa passar.

“Porque escrever”. Um título assim só poderia ser seguido de uma justificativa. Começo esse álibi constatando que se trata de um álibi. Minha escrita pode ser atacada quando a Lei da gramática ou da ortografia não for respeitada, atacada por aqueles que guardam um ideal de bom português; pode ser capturada como louca quando a sintaxe não ficar coerente com a Lei normopata da “boa” comunicação.

Não deixarão você escrever livremente. Tem sempre um modelo a ser seguido, sob pena de coação, desqualificação, indiferença. Tem sempre uma doutrina a ser aprendida, engolida, antes que se possa dizer qualquer coisa em nome próprio. Mas depois da coação, você sempre poderá se redimir, pois uma coisa que as instituições do Estado fazem de melhor é desqualificar para depois poder qualificar, ao seu proveito, para a reprodução do próprio Estado. E não só as escolas e as universidades estatais, mas entre nós mesmos há microviolências do cotidiano que indicam uma sinistra interiorização do Estado violento em nós.

Não deixarão você errar; errar no sentido de desvio da norma, mas também no sentido de errância… pois nessas andanças contra a Lei ou à revelia dela, você pode criar alguma coisa que escape ao controle. Não deixarão você diferir, pois mais do que um desvio da norma, a diferença é um movimento sem lei. E se as opressões são tão terríveis, é porque elas impedem os movimentos, e não porque ofendem o Eterno.

“Mas que heresia será escrever de qualquer jeito! Escrever como pode, como deseja!? Cuspindo no que foi canonizado nas leis das gramáticas, dos ícones e das doutrinas?! Como ousa falar em nome próprio?! Respeite o simbólico! Renda-se, pois Jesus te ama!”. E é um “amor” que ensina a entrega de si a uma autoridade superior que começa na religião e que não só culmina, mas funda o próprio Estado. (1) Religião, religare, religar; (2) Simbólico, aquilo que une; (3) Estado e sua cultura de paz. Essa também daria uma santíssima trindade. Contra o domínio (Estado) sagrado (religião) do simbólico, a autonomia profana do diabólico. Escrevamos, pois. Erremos, pois. Em nome próprio. Estamos em guerra.